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Entrevista com Escritor Cubano Leonardo Padura
Entrevista com Escritor Cubano Leonardo Padura

LEONARDO PADURA

 

ESCREVO ATÉ O LIMITE DO PERMITIDO”

 

O romancista diz que a publicação de seus livros, que denunciam o autoritarismo, é um sinal de que Cuba está mudando – mas não é possível prever aonde chegará.

 

Leonardo Padura é o nome mais forte da literatura cubana atual. Tão forte que consegue escrever um romance histórico sobre os horrores stalinistas pós-revolução e a perseguição que levou ao assassinato de Trótski (O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS). Ou usar a fuga de judeus para Cuba durante a guerra para discutir o livre-arbítrio em seu país (em HEREGES, que foi lançado em setembro/2015 pela editora Boitempo). Apesar dos recados implícitos, e de viver em Havana, ele não sofreu represálias nem foi cercado. “Escrevo até o limite do que se considera apropriado ou permitido em determinado momento, ou um pouco além”, diz o autor, de 60 anos, que esteve na Feira do Livro de Canoas/RS, e na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip/2015). O observador atento do regime castrista, Padura diz que, seis meses depois do reatamento das relações diplomáticas com os Estados Unidos, as mudanças ainda não são perceptíveis para a maioria da população. O futuro? Para ele, fazer previsões sobre Cuba “não é um exercício recomendável”.

 

 

Há um ano o senhor afirmou que um indício de que Cuba estava mudando era a publicação de O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS, livro crítico contra os horrores do stalinismo. De lá para cá, os Estados Unidos reataram relações diplomáticas com seu país e várias empresas se preparam para se instalar em Cuba. Quais foram as mudanças mais marcantes nesse período?

Começamos um processo lento, no qual houve feitos notáveis, como o encontro entre os dois presidentes, ambos sorridentes, na Cúpula do Panamá, e a retirada de Cuba da lista de países que financiam e apoiam o terrorismo. Mas, de concreto, pouco aconteceu. A questão dos negócios e dos investimentos ainda está no ar. É preciso haver mudanças nas leis americanas e ver qual é a resposta do governo cubano, que não parece muito disposto a ceder território, ao menos em áreas como telecomunicações. Os paladares (restaurantes privados, geralmente instalados em áreas turísticas) já receberam muitos turistas americanos e seus donos ganham dinheiro. Mas, para o restante da população, a vida segue igual, na mesma luta pela sobrevivência diária.

 

 

Moisés Naim, intelectual venezuelano, autor de FIM DO PODER, e Jorge Castañeda, cientista político e autor de uma biografia de Che Guevara, afirmaram, em entrevista a ÉPOCA, que Cuba só prosperará economicamente quando Fidel e Raúl Castro deixarem o poder. O senhor concorda com isso?

Detesto fazer previsões sobre o futuro, ainda mais sobre Cuba. Nos anos 1990, foram publicadas dezenas de livros sobre o fim do castrismo. Antes do 17 de dezembro (quando foi anunciada a retomada de relações diplomáticas entre os dois países), quantos cientistas políticos anteviram que havia conversas entre os dois países? Fazer previsões sobre Cuba não é um exercício recomendável.

 

 

O senhor ganhou recentemente o prêmio Princesa de Astúrias, um dos mais prestigiosos da literatura. Fica mais difícil trabalhar com o peso de um prêmio dessa importância?

Muda meu currículo, minha visibilidade e a de meus livros, mas não o essencial, porque nada pode mudar o grande problema de um escritor: o desafio da criação, a luta com as ideias, com as palavras. Fico muito feliz com o prêmio e um pouco tonto ao me ver em uma lista da qual fazem parte grandes escritores.

 

 

O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS mostra um trabalho profundo de pesquisa sobre a história de Trótski e de seu assassino, Ramón Mercader. Como se faz para reconstituir um capítulo tão importante da história contemporânea e criar, a partir dele, uma ficção?

Com muito trabalho. Primeiro, com uma longa investigação de assuntos bastante obscuros da história do século XX, mais obscuros ainda em Cuba, onde pouco ou nada se sabia de Trótski, sua obra, sua vida e morte. Depois, escrevendo de forma muito cuidadosa, tentando criar uma estrutura de romance que prendesse um leitor que, antes de abrir o livro, já sabia de um de seus desenlaces fundamentais: a morte de Trótski. Foram cinco anos de trabalho intenso, de muitas dúvidas e desafios narrativos e políticos, nos quais pus toda a minha disciplina, esforço e o pouco de inteligência que tenho. Tudo isso se cristalizou em uma obra da qual estou muito orgulhoso. Graças a esse romance, por exemplo, pude conquistar os leitores brasileiros, que até então não me davam muita importância, apesar de meus livros funcionarem muito bem em toda a América Latina e em muitos lugares da Europa. Mas Brasil é Brasil.

 

 

Em HEREGES, o senhor mais uma vez fez uma longa pesquisa histórica, desta vez para contar a saga dos judeus que fugiram da Europa durante a guerra. Quanto tempo levou essa pesquisa?

HEREGES me custou entre três e quatro anos de investigação e escrita. Se o problema para escrever O HOMEM... era conseguir informação, neste romance a questão era organizar uma quantidade infinita de informações. Compreender a cultura judaica, a religião, os costumes, para poder escrever, foi um desafio brutal. Escrever uma obra que podia desembocar em leituras políticas que eu não buscava, a não ser em seus fundamentos existenciais, foi um desafio. Como em O HOMEM... estava tocando em temas muito sensíveis, que até hoje são feridas abertas, sangrentas.

 

 

O que o levou a se interessar por episódios históricos para usá-los em seus romances?

Eu me interesso pela enorme capacidade da história de iluminar e explicar o presente. Foi o que fiz em LA NOVELA DE MI VIDA (2001), que considero meu romance mais bem-sucedido literariamente. Nele descrevo um personagem (real), do início do século XIX, e um do final do século XX, ambos cubanos colocados como se diante de um espelho no qual se refletem, de maneira quase idêntica, seus conflitos com a sociedade, a criação, a vida... Aqui a história é como uma serpente que morde sua própria cauda. Além disso, desde que comecei a escrever sinto uma forte atração por encontrar a origem das coisas e desenvolvi isso não só como romancista, mas também como ensaísta e jornalista.

 

 

HEREGES traz de volta Mario Conde, o detetive que o senhor criou. Qual sua relação com a literatura policial? Quando começou a apreciar o gênero e quais são seus detetives favoritos?

Minha relação com a literatura policial é a de um amor crítico, se é que isso pode existir. Sempre fui um grande leitor de romances policiais, adoro sua forma literária e sua capacidade de se entranhar na realidade. Sempre quis escrever um policial, mas não me ocorria nenhuma boa história. Até que decidi escrever um romance em que a investigação não era o mais importante, e sim a ótica social e humana dos conflitos. Isso me ajudou na criação dessa figura tão contraditória e humana que é Mario Conde. É muito fácil saber quais são meus detetives favoritos: Philip Marlowe, de Raymond Chandler; Pepe Carvalho, Manuel Vázquez Montalban; Sam Spade, de Dashiell Hammett... A lista é longa, pois devo muito a muitos autores.

 

 

Ainda há preconceito contra a literatura policial, considerada um gênero “menor”. Como fazer esse tipo de literatura sem ser considerado um escritor de segunda categoria?

Só se pode fazer literatura de primeira linha se o escritor faz seu trabalho com seriedade e ambição. Não importa qual é o gênero. Por isso há bons e maus romances policiais, o que também ocorre na literatura “séria”. Considerar o romance policial uma categoria menor é injusto e elitista. O gênero já demonstrou sua grande capacidade de análise social, de crítica aos sistemas, muitas vezes com grande qualidade estética; Eu me orgulho de escrever romances policiais que, na realidade, não são tão policiais, embora possam ser lidos como tal. Quando me sento para escrever, o que crio é literatura.

 

 

O senhor vai participar, na Flip, de uma mesa com Sophie Hannah, escritora inglesa que “ressuscitou” o detetive Hercule Poirot, criação de Agatha Christie. O senhor ressuscitaria um detetive “morto”, criado por outro autor?

A verdade é que manter Mario Conde vivo já me dá bastante trabalho. Esses exercícios de tentar extrair literatura do que já existe não me atraem. A mim parece um pouco oportunistas, embora às vezes produzam bons resultados literários e, sobretudo, comerciais. Mas, com todo o rum que Conde bebe, com todos os problemas da realidade cubana que muda diante de seus olhos sem que ele entenda bem o que está acontecendo, com a dificuldade de encontrar uma boa história para ele protagonizar, já estou bastante ocupado para exumar cadáveres.

 

Fonte: Época/Cristina Grillo em 22/06/2015