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Adolfo Bioy Casares por Luís Augusto Fischer
Adolfo Bioy Casares por Luís Augusto Fischer

FASCÍNIO VANGUARDISTA

 

A edição número 20 da sempre interessante revista Serrote, do Instituto Moreira Sales, traz um texto precioso, um testemunho de alta relevância para a nossa história recente.  Trata-se de parte do diário de Adolfo Bioy Casares, o grande escritor argentino (1914 – 1999), que dá testemunho de uma sua viagem ao Brasil no ano de 1960.  O propósito explícito foi comparecer a um congresso do Pen Club, mas por baixo havia a intenção do autor de reencontrar um antigo affaire, uma moça que ele havia conhecido ainda menina em Paris.

 

Este subenredo amoroso não faz a menor falta para o que me parece realmente central no texto: um testemunho sobre o nosso país, naquele momento.  Bioy visitou o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, esta pouquíssimo antes de sua inauguração.  (Usar a palavra “inauguração” em relação a uma cidade, e ainda mais para uma capital de país grande, tem algo de pesadelar, de terrorífico.  Como é que aceitamos isso como natural?)

 

Bioy Casares era um tipo de aristocrata, como se sabe.  Rico, culto, ligado por amizades a outras figuras ricas e cultas, foi escritor por gosto, sem nunca depender das letras para viver.  É, pois, desse ângulo social e culturalmente superior que ele comenta o que vê – mas é também do ponto de vista de um argentino, aliás, de um portenho cosmopolita que ele observa aquele Brasil fervendo de desenvolvimentismo.

 

(Ele não menciona, mas nós podemos lembrar brevemente, que em 1960 o Brasil era campeão mundial de futebol pela primeira vez, conhecia a Bossa Nova e o Cinema Novo em seus passos iniciais, tinha indústria automobilística moderna, construía a nova capital com uma ousadia ao mesmo tempo econômica e estética talvez nunca vistas – sem ir mais longe nesta evocação.)

 

Do Rio ele menciona a beleza e o calor, assim como a positiva abertura para o estrangeiro, mas se fixa no relato do encontro de escritores em si.  Já de Brasília ele nos dá notícias mais agudas: a cidade “ tem algo de delírio de arte moderna de um burocrata imaginoso”.  “Brasília é uma operação de um déspota” e é também “uma operação demagógica, porque as multidões (...) estão orgulhosas, exaltadas de patriotismo”.

 

Essa última nota me parece um comentário originalíssimo, para mim desconhecido como descrição da construção de Brasília: a nova capital como um motivo de exaltação patriótica.  Estamos acostumados a associar patriotismo com a Seleção e seus títulos, sim, e Brasília parecia longe disso.  Mas claro, faz sentido o juízo do portenho: orgulho nacional embutido na fantasia de tocar o futuro com a mão, na nova cidade, construída no meio do nada.

 

Aliás, “nada” uma vírgula:  a nova cidade estava sendo construída ali onde moravam índios, que por ela foram desalojados, para qualquer lado.  Bioy Casares, que também ia fotografando coisas (pena que a edição não tenha estampado o resultado), anota em seguida:  “Fotografei, não sei com que resultado, coisas dignas do pior (ou do melhor, tanto faz) Le Corbusier e uns índios com orelhas de um palmo, furadas, que há três anos eram os únicos habitantes da região”.

 

A sequência “pior – melhor – tanto faz” de Le Corbusier é um primor retórico, digno do grande amigo de Bioy, Jorge Luis Borges.  Quem foi capaz de pensar algo parecido, no Brasil ou na América, em termos de agudeza crítica?  Quem conseguiu manter acesa uma visada crítica ou ao menos cética com aquele monstro arquitetônico e urbanístico?  Neste ano de 2015, cinquentenário da morte do arquiteto e urbanista francês, o autoritarismo de suas concepções tem ficado claro, ao lado da certeza de sua colaboração ativa com o regime de Vichy, na França ocupada pelo nazismo.  Quanto disso se imiscuiu nos projetos de Brasília?

 

Na etapa paulista de sua viagem, o escritor argentino teve tempo de perceber coisa parecida:  “O mundo oficial brasileiro está absolutamente entregue a qualquer cubista, concreto ou abstrato, que lhe proponha suas garatujas”.  Eis um diagnóstico do caldo de cultura que engendrou, duas gerações atrás, o nosso tempo.

 

Fonte:  ZH/Luís Augusto Fischer/Professor de Literatura na UFRGS e escritor/em 16/8/2015.