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JUN: de Keum Suk Gendry-Kim
JUN: de Keum Suk Gendry-Kim

UMA HISTÓRIA SOBRE AUTISMO, PRECONCEITO E A MÚSICA DO VENTO

 

Quadrinhos — A biográfica JUN é a terceira obra da roteirista e desenhista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim lançada no Brasil

 

Livro: JUN de Keum Suk Gendry-Kim - Editora Pipoca & Nanquim, tradução de Yun Jung Im, 260 páginas

 

"Qual é o seu desejo?", perguntou um jornalista de TV à mãe de Jun Choi, personagem que dá título à terceira história em quadrinhos da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim publicada no Brasil.

 

Todas saíram pela mesma editora, a Pipoca & Nanquim, que repete aqui o elegante tratamento gráfico — "papel offset 90g, capa dura, sobrecapa macia e com verniz localizado, lombada redonda e fitilho de tecido, seguindo o mesmo padrão dos manhwas (as HQs do país localizado no Sudeste Asiático) anteriores", diz a descrição.

 

JUN (tradução de Yun Jung Im, 260 páginas, R$ 74,90) foi publicada originalmente em 2018, no meio de GRAMA (2017) e A ESPERA (2020). Serviu como um a espécie de hiato temático da autora nascida em 1971. Nas outras duas obras, Gendry-Kim dedica-se a revisitar momentos históricos e trágicos da Coreia do Sul pelo olhar de pessoas comuns que foram arrastadas para dentro do furacão.  GRAMA é sobre as mulheres que foram sexualmente escravizadas pelo exército japonês na primeira metade do século 20. A ESPERA retrata o drama das famílias separadas por causa da Guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953.

 

Em JUN, ela deixa de lado o grande quadro da História, mas segue trabalhando com personagens reais e relatos pessoais, segue alternando os comentários críticos (em vez de militares e governantes, os alvos são a sociedade e o sistema educacional) com discursos de esperança e perseverança.

 

Também como em GRAMA e A ESPERA, JUN toma uma cena do presente como ponto de partida para uma viagem pelas lembranças. Gendry-Kim assume a memória e a voz de Yun-Seron, a irmã três anos mais moça de Jun Choi. Ele nasceu em 1990 e, com dois anos e meio, ainda não havia falado uma única palavra. Logo veio o diagnóstico: transtorno do espectro autista (TEA).

 

Por meio das recordações e da vivência de Yun-Seon com seu oppá (o termo que as sul-coreanas usam para se referir a um homem mais velho), a quadrinista conta uma história que deve ser comum a muitas famílias – somente no Brasil, estima-se em 2 milhões o número de pessoas com autismo.

 

MEU IRMÃO SE TORNOU UM SEGREDO SECRETÍSSIMO

 

Às dificuldades de comunicação e interação social somam-se o medo (ou até a vergonha) dos pais e o preconceito (e não raro o bullying) dos outros. Jun fazia ludoterapia e frequentava uma fonoaudióloga, mas sua família também tentava caminhos alternativos, como ossos de tigre em pó e um pastor com fama de milagreiro. Nada dava resultado, e o guri, quando estava em público, acabava atraindo olhares entre o espanto, a piedade e a reprovação. Na escola, uma professora insensível reclama — "Por que o colocaram logo na minha turma?" —, e o diretor é cruel ao determinar à mãe de Jun que troque o filho de colégio: se tivesse um neto assim, diz, "ele não pisaria fora de cada".

— Meu irmão se tornou um segredo secretíssimo da nossa família que não queríamos que ninguém descobrisse — descreve a irmã, ela própria bastante afetada por se sentir sempre em segundo plano ou por ser alvo de cobranças, um risco a que mesmo pais atenciosos estão sujeitos.

 

Mas Gendry-Kim não está interessada apenas em abordar o horror da exclusão social, a ignorância sobre o EA e as fissuras familiares. A história em quadrinhos também valoriza o amor e a dedicação dos pais, a parceria que vai se formando entre os dois irmãos e o papel fundamental que a arte teve no desenvolvimento de Jun. Como era sensível a sons, foi ter aulas de pungmul, uma tradição do folclore coreano que alia dança e instrumentos musicais. Também se interessou pelo pansori, gênero musical que combina percussão a narrações faladas, partes entoadas e outras cantadas. Jun prosperou, se apresentando como cantor nas ruas e virando personagem de reportagens na televisão. Descobriu a música no farfalhar das árvores, nos ruídos dos ventiladores e no barulho do metrô — e assim tornou-se um compositor, que, com sua dança do vento, contagia quem está por perto.

— É isso. Você está certo, oppá — pensa Yun-Seon. — Não vamos viver no inferno da angústia por antecipação, não vamos nos preocupar com o amanhã.

 

O amanhã nos remete à tal entrevista que os pais de Jun concederam a um jornalista de TV. Ao responder qual era o seu desejo, a mãe do personagem sintetizou em uma frase todos os cuidados e todas as preocupações que um filho autista pode despertar:

— Eu e o pai do Jun gostaríamos de uma única coisa: viver um dia a mais do que o Jun.

 

Fonte: Zero Hora/Caderno Vida/Ticiano Osório (ticiano.osorio@zerohora.com.br) em 26/06/2022