Translate this Page




ONLINE
6





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Os Rios das Letras: por Leandro Karnal
Os Rios das Letras: por Leandro Karnal

OS RIOS DAS LETRAS

Focar 100% nos textos técnicos, a médio e longo prazo, diminui a capacidade estratégica e de inovação.  Um psicólogo aprende muito sobre o comportamento humano lendo Freud, mas aprende tanto – ou mais – lendo Dostoievski (alguém que Freud leu muito).

 

Nunca foi tão difícil ler. Nunca lemos tanto.  Paradoxo? Somo a isso outro desafio: a seleção das leituras? Desenvolvo.

 

Quase todos passamos assim o dia – lendo mensagens no celular, navegando por sites, vendo pequenos textos. Na história humana, somos a geração que mais lê (além do fato de que nunca houve tão poucos analfabetos no planeta como em 2023). Acha que muita gente é analfabeta hoje?

 

Exemplo do Brasil: existe muita gente incapaz de ler um bilhete simples. Há cerca de 6% de analfabetos. Número alto? Sim. Em perspectiva: há cem anos, eram mais de 70%. Nunca tanta gente leu. Nunca lemos tanto.

 

O reverso do fato. Lemos frases curtas, mensagens com desenhos, passamos os olhos rapidamente por tudo. O celular deu acesso a muita coisa, mas... você conhece alguém que tenha lido OS LUSÍADAS pelo smartphone? Parece-me que os grandes livros foram acessados em papel, jamais em telas luminosas.  Porém, exagero com o exemplo de Camões.  Vamos para algo muito menor: pouca gente leu na tela DOM CASMURRO.

 

Ler implica concentração. Celulares impedem foco por muito tempo. O mesmo aparelho mágico pode lhe dar acesso ao texto, resolver dúvidas históricas, vocabulário na leitura, até mostrar imagens do autor (e da época).  No entanto, os celulares são os emissores de notificações, de apelos à distração com um multiverso sedutor.  Tudo é facilitado pelo acesso às redes. Tudo se torna difícil quando decidimos ler com ou ao lado de um aparelho.  A tecnologia e o uso que fazemos dela apresentam este desafio: matar de fome em meio à oferta excessiva de guloseimas.

 

Vamos ao outro desafio.  O que ler?  Ler é uma decisão e necessita da insistência para se tornar um hábito.  Ao optar, temos de escolher o texto. Alguns são obrigatórios, coisas da nossa área.  Os profissionais de saúde devem ler artigos científicos. Chefes de cozinha devem analisar tendências culinárias em revistas especializadas.  Textos técnicos não são um ato de vontade: são obrigatórios. Quem não lê o que ocorre na sua área opta pelo declínio inevitável.

 

Há outra questão. Focar 100% nos textos técnicos, a médio e longo prazo, diminui a capacidade estratégica e de inovação.  Você lida com pessoas? Elas não são apenas um sistema circulatório ou digestivo.  Elas possuem cultura, história, crenças.  Um psicólogo aprende muito sobre o comportamento humano lendo Freud, mas aprende tanto – ou mais – lendo Dostoievski (alguém que Freud leu muito).  Já imaginou uma cirurgiã plástica que, sabendo tudo sobre procedimentos estéticos, nada entende de história da arte (fundamental ao que entendemos como beleza)?  Um professor de matemática que navegue com facilidade em geometria e álgebra, mas ignore psicologia da educação?  A segunda etapa após a literatura técnica é aquela que forma mais do que informa: as leituras de "educação da mente".

 

Importante medir: tanto a técnica como a de formação devem causar algum ou muito prazer.  Elas são duas colunas que devem ser dosadas com sabedoria.  É subjetivo, mas eu arriscaria um número:  a cada dois textos técnicos, um de ampliação dos sentidos.

 

Bastam os dois campos? Não.  Existe uma leitura de puro prazer. Ela é prima dos técnicos e irmã dos de "educação da mente". Nesse campo, eu destaco a crônica, o texto de humor, os quadrinhos de qualidade. São para um deleite imediato e, sendo de qualidade, podem estar próximos do segundo grupo de leituras.

 

Darei três exemplos na minha área. Reli um texto clássico de história: A MORTE É UMA FESTA, de João José Reis (relançado em edição comemorativa pela Companhia das Letras).  Uma análise brilhante de um fato ocorrido em Salvador, a Revolta da Cemiterata. Classificaria como um "texto técnico", mas o brilho da escrita e a pesquisa de Reis parecem englobar os três grupos que descrevi.  Para o clube do livro que mantenho com Gabriela Prioli, li O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório (também Companhia das Letras).  Seria a categoria dois: uma ficção densa de "educação da mente". Por fim, no ano passado, eu tive muita alegria com os quadrinhos de Carlos Ruas: DE ONDE VIEMOS (ed. Um Sábado Qualquer). A obra compara narrativas de origem sobre homens e deuses, uma aula de bom humor, criatividade e tolerância religiosa. Descubra outras produções de Carlos Ruas, pois você aprenderá muito e com graça (indispensável para tempo de fundamentalismo limitante).

 

Os limites dos três afluentes de leitura são muito imprecisos, em razão do volume de água de cada um. O importante é que todos deságuem no grande lago da vida, mudando e renovando correntes, trazendo novos peixes e aragens mais renovadoras. Tanto faz o tipo: um livro é bom quando se aprende algo; quando gera um incômodo com alguma ideia, renovando certa visão, derrubando um preconceito e repensando o mundo. Um bom livro traz a vontade de ser melhor.

 

Muito mais importante do que imaginar se a obra pertence ao grupo A, B ou C é focar no hábito diário da leitura e afastar-se de outras distrações.  Sempre brinquei na universidade que ler é como um encontro erótico:  "Se você interromper muitas vezes, talvez perca a capacidade de prosseguir".

Ler é esperançar!

 

Fonte:  Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Leandro Karnal em 05/03/2023