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Si e Consigo:Só Usar Quando se Referir ao Sujeito
Si e Consigo:Só Usar Quando se Referir ao Sujeito

O PRAZER DAS PALAVRAS

 

FALANDO CONSIGO, DESTE LADO DO ATLÂNTICO, SI E CONSIGO SÓ PODEM SER USADOS QUANDO SE REFERIREM AO SUJEITO.

 

Chegando de viagem, recebo uma mensagem enviada por um irascível leitor que, suponho, estava tão ansioso em desabafar que terminou esquecendo de informar seu nome e a cidade onde mora.  O objeto de sua fúria era – pasmem! – nada mais, nada menos que o escritor português Valter Hugo Mãe, pacatíssimo cidadão que, pelo que contam minhas amigas, seria capaz de inspirar bons sentimentos até mesmo na temível Lucrécia Bórgia.

 

O meu anônimo leitor, contudo, esbraveja contra a superficialidade do que Mãe escreve, chama-o de “santinho do pau oco”, acusa-o de “jogar para a torcida” e conclui, triunfante:  “E ainda por cima não domina o idioma!”.  Não vou opinar sobre a qualidade literária de uma obra que ainda não li, mas ao menos posso assegurar-te, esquentado leitor, que não encontrei nada de errado na maneira como ele emprega os pronomes – aliás, como eu já suspeitava mesmo antes de ler o texto que veio anexado à mensagem, uma carta cordialíssima que Valter Hugo escreveu para uma professora gaúcha.  Afinal, quem é do ramo sabe que  a escolha e a colocação dos pronomes é uma das poucas áreas em que o uso culto do Português Brasileiro diverge do uso culto do Português Europeu.

 

Na carta, o autor, dirigindo-se à professora, emprega os pronomes consigo e si (“Solidário consigo” e Disseram-me de si coisas muito bonitas”) ali onde os brasileiros empregariam você ou a senhora.  Deste lado do Atlântico, si e consigo só podem ser usados como reflexivos, isto é, quando se referirem ao sujeito do verbo (“Ele sempre leva a chave consigo”, “Você precisa pensar em si e não nos outros”).  Se Valter Hugo fosse brasileiro, sua construção seria condenável; sendo português, no entanto, nada há a reparar.

 

É claro que não foi sempre assim.  Até meados do séc. XIX esses dois pronomes também eram exclusivamente reflexivos em Portugal, como se pode perceber por um episódio da divertidíssima polêmica de Camilo Castelo Branco com um tal de Pina, que o atacou nos jornais.  No meio da troca de chumbo, Pina sai-se com um “É por tudo isto que eu tenho muito dó de si”.  Pronto!  Aproveitando a deixa, Camilo o chama de ignorante; Pina, porém não se dá por vencido e pede provas de que errou.  Camilo responde com um direto no queixo:  “Insiste pela prova do erro do pronome si?  Que vá à escola do vizinho mestre de instrução primária e pergunte-lhe se um pronome pessoal da terceira pessoa pode empregar-se como pronome pessoal da segunda.  O mestre, naturalmente, respondeu-lhe cavalgando-o”.  Não satisfeito, Camilo sugere ainda a Pina um mordaz epitáfio: “Ele não sabia os pronomes.  A terra lhe seja leve como os miolos” – o mesmo Camilo que escreveria, sem remorsos, frases com “Tem razão, Mariana, eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos...”.

 

Fonte:  Jornal ZeroHora/Cláudio Moreno (cmoreno@terra.com.br) escritor e professor... em 12/09/2015