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Escrevendo um Diário
Escrevendo um Diário

CARO DIÁRIO

 

Escrever é talvez um ato de resistência diante da liquidez a que somos empurrados na atualidade.

 

Há alguns dias, iniciei um projeto com o qual já vinha flertando havia alguns meses: escrever um diário. Inspirou-me a leitura dos diários de David Sedaris (escritor norte-americano que, nem tão secretamente, eu gostaria de ser quando crescer), onde registrou pérolas de seu cotidiano que, muitas vezes, fora o germe de seus hilários textos. Mas não só isso: meu pai foi um dedicado “diarista” e, durante anos, registrou, cotidianamente acontecimentos de sua vida em grossos cadernos de capa dura da finada Livraria do Globo.

 

Poderia parecer estranha essa decisão de um homem crescido (não digo maduro, pois afirmar a própria maturidade é uma ousadia e tanto), quando combinaria mais com um adolescente, ou ao menos pareceria um hábito um tanto anacrônico. De fato é: o antigo costume de escrever diários foi, nos últimos tempos, suplantado por postar em blogs, Facebooks e Instagrams, onde diariamente são registrados cotidianos e pensamentos de milhões de pessoas. Que sentido teria esse registro tão antiquado em pleno século 21?

 

Mas há uma diferença fundamental entre os diários de antanho e seus correlatos contemporâneos: enquanto estes se endereçam aos outros, têm sempre um interlocutor imaginário em mente, a escrita em um diário é uma conversa íntima, um diálogo apenas consigo mesmo. Diários não são escritos para serem lidos por outrem – mesmo que isso tantas vezes acabe acontecendo, com ou sem ausência do autor. Graças a diários, nos é possível ter acesso à construção do pensamento e aos bastidores da criação de inúmeros filósofos, escritores, cientistas, artistas.

 

Talvez esteja embutida nessa decisão o desejo de um dia ser um deles (quem não anseia, mais ou menos confessadamente, permanecer no mundo após seu quinhão de vida?), mas certamente não é esse o motor principal da decisão. Escrever um diário, esse momento de intimidade não compartilhada, é talvez um ato de resistência diante da liquidez e da velocidade a que somos empurrados na atualidade. Quem hoje se permite o luxo desse tempo de solitude, de transcrição dos próprios pensamentos, de registros dos detalhes do cotidiano que compõem a experiência de uma vida?

 

Testemunho a rarefação desses momentos de encontro consigo mesmo com alguma frequência em meu consultório, quando analisando dizem, muitas vezes com algum espanto, que somente ali param para pensar em sua vida. São momentos de pausa, de reflexão, de poder se permitir dar lugar, na fala e no pensamento, àquilo que não tem lugar na agenda recheada de trabalho, compromissos sociais e maratonas de séries. Há uma proximidade, nesse sentido, da análise com a escrita de um diário. Porém, no caso daquela, há alguém que escuta o pensamento falado e ajuda a avançar nesse encontro consigo mesmo – afinal de contas, esse nem sempre é um encontro fácil.

 

Há outra função, porém, que me parece valiosa na escrita de um diário: a da construção e da preservação da memória. Temos armazenados em nossos telefones e outros dispositivos eletrônicos centenas, milhares de fotos, conversas, postagens. Mas o que disso compõe nossa memória de vida? O que disso revela aquilo que, de fato, pensamos e sentimos diante dos milhares de acontecimentos do cotidiano? Ficamos tranquilos ao saber que nossos arquivos estão armazenados na nuvem, mas em que nuvem armazenamos tudo o que compartilhamos com ninguém – nossos sonhos, anseios, medos, vergonhas e conflitos?

 

Fonte: Zero Hora/Paulo Gleich/Jornalista e Psicanalista (paulogleich@yahoo.com.br) em 15/04/2018