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Vilém Flusser — por Rodrigo Duarte
Vilém Flusser — por Rodrigo Duarte

UM CONCEITO CRÍTICO DE PÓS-HISTÓRIA

 

FILÓSOFO REFLETE SOBRE CINCO DOS VINTE INSTANTÂNEOS DE FLUSSER NA SEMINAL OBRA “PÓS-HISTÓRIA”.

 

A CRÍTICA DE FLUSSER RECAI SOBRE O FATO DE QUE, NO PRESENTE, A MODALIDADE MAIS AUTORITÁRIA DE DISCURSO – A “ANFITEATRAL” – LIGADA AOS MEIOS DE MASSA, PREDOMINA ABSOLUTA SOBRE OS DIÁLOGOS, SEMPRE MAIS DEMOCRÁTICOS, E SOBRE FORMAS DE DISCURSO MENOS AVASSALADORAS.

 

Mais de 25 anos depois da publicação do artigo “Fim da História?”, por Francis Fukuyama, a simples colocação de sua questão-título ainda rescende ao reacionarismo da posição do ex-funcionário do Departamento de Estado norte-americano, fazendo estremecer qualquer pessoa – mesmo que apenas ligeiramente – crítica ao status quo.

 

Esse cenário de discussão sobre o fim da história, no texto de Fukuyama, sucedeu em quase uma década, por Vilém Flusser, de sua obra sobre a “pós-história”, cuja versão em português, feita pelo próprio autor, foi batizada como “Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar” – publicada pela primeira vez em 1983, pela Editora Duas Cidades de São Paulo.

 

O que chama a atenção mais imediatamente nessa obra de Vilém Flusser é o seu formato, no qual pequenos capítulos – chamados por ele de “instantâneos” – abordam cenas da vida contemporânea no Ocidente, cujos títulos contém quase sempre o pronome possessivo “nosso” (ou “nossa”, conforme o caso), antecedendo um substantivo que evoca uma das referidas cenas.  Alguns exemplos seriam: “Nosso céu”, “Nosso trabalho”, “Nossa comunicação”, “Nossas imagens”, “Nosso divertimento” etc.

 

Apenas para dar uma pequena amostra do teor dessa obra revolucionária, me referirei a cinco desses “instantâneos”, começando pelo “Nosso programa”.  Para Flusser, tanto a Antiguidade quanto a Idade Média se pautavam intelectualmente pela noção de finalidade, assim como a Idade Moderna teve sua motivação principal no conceito de causalidade.  Na época contemporânea, predomina, segundo o autor uma noção de programa, entendida como o script responsável pela atuação dos aparelhos, i.e., máquinas capazes de interatividade, que, no limite dominam as pessoas, degradando-as em funcionários, i.e., meros operadores dos aparelhos, obedecendo, como eles, determinada programação.

 

A descrição desse cenário de submissão das pessoas aos maquinismos se completa, dentre outras coisas, com o conceito flusseriano de comunicação.  No “instantâneo” que lhe corresponde, o filósofo afirma que os sistemas de comunicação se baseiam em dois métodos opostos e complementares: o discurso e o diálogo, sendo que aquele objetiva a difusão de conhecimento e esse a sua criação propriamente dita.  A crítica de Flusser recai sobre o fato de que, no presente, a modalidade mais autoritária de discurso – a “anfiteatral” – ligada aos meios de massa, predomina absoluta sobre os diálogos, sempre mais democráticos, e sobre formas de discursos menos avassaladoras.

 

Esse comportamento “programado” tem como causa certo tipo de imagem típica da “pós-história”, que Flusser chama de “tecno-imagem”: superfícies saturadas de informação, que, diferentemente das “imagens tradicionais”, criadas pela mão do homem, são produzidas por aparelhos – desde a câmera fotográfica convencional, inventada em meados do século XIX, até os modernos meios digitais.  Essa ideia se encontra desenvolvida exatamente no “instantâneo” “Nossas imagens”.

 

Certamente, as tecnoimagens são o conteúdo mais evidente de toda a indústria contemporânea do entretenimento e o enfoque dessa vinculação se encontra no “instantâneo” intitulado “Nosso divertimento”.  Aqui, Flusser se mostra radicalmente crítico ao emburrecimento que a cultura de massas provoca nas pessoas, afirmando que o seu psiquismo se torna mais primitivo do que o aparelho digestivo dos vermes, que ainda consegue processar de certo modo os nutrientes por eles ingeridos.

 

Esse quadro, pintado por Flusser, da “pós-história” como uma época totalmente sombria, vem a encontrar algum alivio, quando, no “instantâneo” denominado “Nossa embriaguez”, ele compara as obras de arte às drogas mais poderosas, capazes de produzir o que ele chama de “viscosidade ontológica”.  Elas possuem, a exemplo da educação, quando exercida na sua função libertadora, a capacidade de fazer os aparelhos estremecerem.  Essa é uma lição que deveríamos aprender urgentemente com Vilèm Flusser.

  

Fonte:  Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/Rodrigo Duarte (Professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG e autor do livro “Pós-História de Vilém Flusser: gênese-anatomia-desdobramentos”, editado pela Annablume em 2012)  em 16/01/2016.