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Instantâneos de Humanidade de Dorrit Harazim
Instantâneos de Humanidade de Dorrit Harazim

INSTANTÂNEOS DE HUMANIDADE

 

A jornalista Dorrit Harazim desvenda as histórias por trás de momentos impactantes da fotografia em ensaios que também analisam as dimensões éticas da imagem.

 

Cercada de brancos hostis, a estudante negra Elizabeth Eckford, de 15 anos, recebe pelas costas o insulto racista da também adolescente Hazel Bryan. O momento preciso é registrado assim por Dorrit Harazim no livro O INSTANTE CERTO: “Vai pra casa, negona! Volta para a Á – clique – frica!”. A feliz tradução textual daquilo que o francês Henri Cartier-Bresson chamava de “momento decisivo” - quando por uma fração de segundo “se alinham cabeça, olho e coração” - não é o único instante em que esta coletânea de 38 artigos, perfis e ensaios breves em torno da arte fotográfica flerta com a boa literatura. Jornalista consagrada, Dorrit se revela menos interessada em fotografia do que na trama humana que envolve as imagens: quem eram as pessoas por trás do visor e diante da objetiva, que vida levavam antes do clique imortal e como este alterou seu curso. Há momentos em que o foco não está sequer na imagem, mas em seu modo de produção: os textos sobre o fotógrafo oficial de Barack Obama e o russo que documentou em cores os últimos anos do czarismo são dois exemplos. Não se trata de um livro de ou sobre fotografia, mas de “uma coletânea de histórias”, afirma a autora na introdução.

 

O instantâneo que uniu o destino de Elizabeth e o de Hazel é uma das imgens-símbolo da luta pelos direitos civis dos negros americanos. Foi feito em 1957 por Will Counts, jovem fotógrafo que cobria para um jornal local o tenso primeiro dia de aula de nove estudantes negros em uma escola segregacionista de Little Rock, capital do Arkansas, forçada a aceitá-los por decisão da Suprema Corte. Counts não é um nome estelar, mas O INSTANTE CERTO não se pretende um quem é quem da fotografia. Tem sua cota de superastros, como Lee Miller, René Burri e Sebastião Salgado, ao mesmo tempo que brilham pela ausência dúzias de medalhões, como o já citado Cartier-Bresson. Também não é uma seleção de fotos antológicas, notáveis pela proeza técnica ou pela importância histórica. Há um bom número dessas no livro, mas elas dividem espaço com imagens em tom menor como a do retratista mineiro Assis Horta.

 

Textos de extensão e profundidade variadas, publicados pela autora em veículos diversos como as revistas Veja, Piauí e Zum, os passeios jornalísticos de Dorrit são sempre interessantes, mas nem todos ilustrados por fotos que se sustentem sozinhas. Veja-se a incrível história do chinês Li Zhensheng, que pir anos correu risco de vida ao documentar em segredo os horrores da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung e esconder os negativos em uma fresta no assoalho de seu apartamento. O livro faz o leitor salivar por esses registros preciosos, mas lhe oferece apenas um autorretrato de Li (ainda bem que existe o Google). Há outros casos semelhantes. No extremo oposto, uma foto mesmerizante pode vir acompanhada de uma história lacunar feita quase toda de sombras. Em maio de 1947, uma bela residente de Nova York chamada Evelyn McHale, de 23 anos, atirou-se do Empire State Building, então o edifício mais alto do mundo, e imprimiu no capô de uma limusine estacionada 86 andares abaixo um ninho de metal onde seu corpo estranhamente composto não perdeu a elegância. Estampada em página inteira na revista Life, a foto do estudante de fotografia Robert C. Wiles, que passava pelo local, é espantosa. Nada mais se soube dele, como pouco se sabe de Evelyn.

 

O impressionismo da seleção é assumido pela autora e explica certas ênfases que, num trabalho menos autoral, poderiam ser vistas como fatores de desequilíbrio. A primazia do fotojornalismo sobre a fotografia de arte ou de moda explica-se pela formação profissional de Dorrit, ela mesma autora de coberturas fotográficas importantes, ainda que ocasionais, como a da Guerra do Vietnã. O predomínio de personagens americanos soa natural quando se sabe que a jornalista morou em Nova York, onde comandou o escritório da Editora Abril e acompanhou quatro eleições presidenciais. Não que ela perca o Brasil de vista. Uma das melhores histórias do livro conta o que hoje se chamaria de “treta” entre a imprensa dos Estados Unidos e a do Brasil. Em 1961, o consagrado americano Gordon Parks fez para a Life um ensaio de tintas sensacionalistas sobre a miséria na Catacumba, morro carioca então favelizado, e ali encontrou um personagem no menino Flavio, que mesmo doente cuidava sozinho da escadinha de irmãos mais novos. A revista O Cruzeiro decidiu se vingar e enviou a Nova York o fotógrafo franco-brasileiro Henri Ballot para mostrar que havia miséria por lá também. Sobreveio uma batalha de tom chanchadeiro.

 

Embora sua estrutura seja de miscelânia, não faltam temas recorrentes a O INSTANTE CERTO. A discussão sobre os limites éticos e o custo emocional da exibição da violência no foto jornalismo de guerra é o principal fio secreto entre os textos e está por trás de uma repetição que, num livro que pode ser lido de enfiada, soa como deslize: o depoimento do fotógrafo sul-africano Greg Marinovich que abre o segundo ensaio do volume retorna na página 200, inteirinho. A repetição lhe tira parte da força. “Pisamos em cadáveres, metafórica e literalmente, e fizemos disso nosso ganha-pão”, começa a voz do integrante do infeliz Clube do Bangue-Bangue, como ele apelidou o grupo de quatro amigos brancos que documentaram com destemor a explosão de violência entre negros na fase final do apartheid.

 

O lamento de Marinovich continua ressoando, de forma menos explícita, ao fundo de histórias como a do americano Eddie Adams, autor de Execução em Saigon, uma das fotos mais emblemáticas da Guerra do Vietnã. Quando o general sul-vietnamita aproxima o revólver da cabeça de um vietcongue que chora de pavor, o momento decisivo é aquele que, no cinema, ficaria um fotograma antes do disparo. Adams ganhou o Pulitzer com essa imagem, mas a odiava. “O chefe de polícia, general Nguuuyen Ngoc Loan, matou um vietcongue e eu matei o general com minha câmera”, torturou-se até morrer, em 2004, aos 71 anos. “Duas vidas foram destruídas, e eu era um herói.” Na introdução de O INSTANTE CERTO, Dorrit Harazim adverte que, por tratar sobretudo das históricas que cercam as fotografias, seu livro “será de pouca serventia aos praticantes do ofício”. Convém duvidar. A menos que se trate de praticantes que não gostem de ver a dimensão humana de seu ofício investigada com sabedoria e sensibilidade.

 

Fonte: Veja/Sérgio Rodrigues em 22/06/2016.